A REVOLUÇÃO PORNOGRAFICA


A banda larga acelerou também uma revolução no desenvolvimento sexual dos jovens neste século. Meninos e meninas tomaram a pornografia como algo trivial na vida. E isso cada vez mais cedo. Como o universo adulto ainda falha em oferecer esclarecimentos, muitos "aprendem" sozinhos. É nesse cenário que o repertório da web pode virar um espelho deformado da realidade, com noções equivocadas sobre como tratar uma mulher e como buscar prazer numa relação. As novas gerações crescem com o risco de tomar a pornografia por sexo convencional - ou, pior, uma prática melhor que sexo de verdade.

Nem é preciso correr atrás. Esse conteúdo chega fácil por meio de grupos de amigos ou parceiros de flerte. A pornografia salta das telas dos celulares dos garotos. Em qualquer lugar, os jovens trocam e compartilham nudes pelo WhatsApp, por exemplo, num comportamento que indica a informalidade desta geração para lidar com o que era tabu. Em meio a essa distribuição de imagens de corpos nus, fica a pergunta: o que a intimidade, própria e alheia, ainda significa?

Nessa virada comportamental, o controverso vício em pornografia ganha status de patologia na psiquiatria. Hoje, especialistas em estudos sobre sexualidade começam a mirar os efeitos do consumo excessivo - e precoce - de conteúdo adulto. Um pacote de depressão, ansiedade, déficit de atenção e até uma alarmante incidência de disfunção erétil entre jovens tem aparecido nos consultórios, em transtornos ligados à compulsão por vídeos.

Mas os atores desse debate concordam que não cabe à pornografia o papel de vilã. Psiquiatras, ativistas ligados à sexualidade e mesmo muitos dos próprios jovens entendem que a carência reside no diálogo coletivo e na maneira de entender o relacionamento das pessoas com suas necessidades sexuais. A busca pelo prazer já existia muito antes da internet e certamente seguirá existindo. Cabe então à sociedade ajudar essas gerações que crescem com celulares na mão a entender que o sexo na vida real não tem gosto de plástico.

Há um consenso entre especialistas em sexualidade que uma geração entra em contato com a pornografia mais cedo que a anterior. Como a era digital pôs a internet à frente do diálogo familiar e escolar, muitos garotos têm baseado seu perfil sexual na cultura de agressividade e dominação contra meninas. Afinal, a pornografia convencional sempre louvou a ejaculação masculina.

Thiago Torres Monteiro é integrante do Clube Love, plataforma que promove debates sobre sexualidade. Em 2015, o grupo fez barulho na internet entre jovens com uma campanha ousada contra a banalização dos nudes. "Os jovens não entendem o nude como pornografia. Faz parte da paquera. E, mais para frente, é até normal o menino compartilhar a foto da namorada nua com os amigos", relata ele, que aponta a cultura de humilhação feminina como a distorção mais comum do adolescente que constrói hoje a sua sexualidade. "É alarmante a quantidade de meninas que se suicidam depois de passarem por constrangimentos de serem expostas na internet", afirma.
Há o risco de esse comportamento condicionar preferências. Foi mais ou menos isso o que aconteceu ao mato-grossense Miguel*, compulsivo por pornografia:

“Eu tentei reproduzir algumas coisas vistas nos vídeos pornográficos. Ela (parceira) não gostou, e eu também não me senti bem em fazer isso com ela. Mesmo se realizasse todas as minhas fantasias, isso não iria me satisfazer (...) a minha frustração é pelo fato de saber que esses atos não preenchem o vazio da minha alma.”

O QUE É NORMAL?
Uma deformação dos padrões considerados normais pode ser vista em estudo recente publicado na Espanha. O trabalho identificou uma onda de garotas adeptas da depilação total da vagina e uma tendência de meninos exageradamente agressivos com suas parceiras - características típicas da pornografia. O Brasil ainda não conta com nenhum levantamento desse tipo, mas a observação de especialistas aponta direção semelhante.

"O garoto vê que sua parceira estranha, e ele passa a ser rejeitado. E ele não entende o que está acontecendo. Ele diz: 'eu fiz aquilo que deveria ter sido feito e não tive a contrapartida'", afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do programa de estudos em sexualidade e professora da Escola de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). "Ele vai achar que sofre de alguma deficiência. Os órgãos sexuais que ele vai ver nessas cenas e o desempenho dos atores não são compatíveis com o cotidiano. Então, o jovem vai pensar que jamais conseguirá um desempenho daquela ordem", completa a médica.

Para o jovem incomodado com seu comportamento sexual, a informação é sempre uma saída. E, mais uma vez, a internet faz o papel de ombro amigo. Depois de uma dica do Miguel, o TAB ingressou num fórum online no qual adolescentes brasileiros discutem disfunção erétil, compulsão por categorias extremas de pornografia ou sentimento de vergonha. Garotas também descrevem suas experiências nesse espaço. Uma delas fala da perseguição social que enfrentou após admitir para meninos que gostava de pornô. Outra seção concentra depoimentos de mulheres que lidam com distúrbios de parceiros, pedindo conselhos.

E OS PAIS?
 "Tentei falar com a minha mãe, mas ela dizia que era coisa natural: 'seu tio fazia isso, seu pai fazia isso'. Mas ela não sabia que eu abria 20 abas de sites por noite", conta o paraense Ricardo* sobre a tentativa de procurar ajuda dentro de casa.

Lidar com a situação já não era fácil há 20 anos, quando um pai encontrava a coleção de revistas masculinas do filho adolescente e tomava como necessária uma conversa de orientação. Hoje, o repertório pornográfico na órbita dessa faixa etária é bem mais vasto, com particularidades muitas vezes impensáveis para a cabeça dos pais. Mesmo assim, juntar coragem para um papo franco continua sendo a alternativa mais adequada.

"Até existem pais que dão camisinhas para seu filho, para sua filha, mas sem conversar fica difícil. Porque não é só a gravidez que está em jogo na realidade deles", diz Thiago Torres, ativista do Clube Love. "O próprio compulsivo não vai se declarar enquanto ele não chegar a uma situação de limite. O que leva ele a buscar ajuda é ter passado por perda e sofrimento", completa Carmita Abdo, da USP.
Uma busca simples no Google oferece a sensação que a pornografia domina a rede. Um exemplo mais preciso sobre a fartura desse conteúdo pode ser visto na compilação de dados abaixo, retirada de um relatório anual do site PornHub:

Sites de pornografia têm mais visitantes mensais do que Netflix, Amazon e Twitter, juntos
4.392.486.580 horas foram gastas nos vídeos do PornHub em 2015 (sim, 4 bilhões!)
87.849.731.608 vídeos foram vistos no PornHub em 2015 (média de 12 vídeos por pessoa no planeta)

Os brasileiros gastaram em média 7min57 no PornHub em 2015 - ocupam o número 18 no ranking de países (Filipinas lidera a estatística, com 12min45) Como foi o acesso do Brasil no PornHub em 2015: 50% computadores, 45% celulares e 5% tablets.

DEZ HORAS SEGUIDAS
Guilherme*, 28, percebeu o seu vício em pornografia quando sua rotina passou a incluir sessões de até dez horas na frente do computador. "Escolhi ficar trancado em uma sala das 8h às 18h sem comer, sem beber, sem falar com ninguém, para ficar apenas me masturbando e vendo pornografia", conta o rapaz.

Já Miguel*, 29, se viu no fundo do poço ao não conseguir se concentrar no trabalho - eram comuns as pausas para masturbação. Por sua vez, o paraense Ricardo* diz que já se considerava compulsivo por pornografia aos 14 anos. Hoje, com 21, ainda batalha para que o comportamento não atrapalhe sua vida de universitário.

É possível identificar pontos em comum nas histórias desses homens. Além do quadro de isolamento social que acompanha o ritual, a recuperação ocorre com atividades que "ocupem a mente". Eles também contam o tempo sem recaídas, exatamente como fazem membros do Alcoólicos Anônimos em tratamento - é um dia de cada vez. Quando conversou com o TAB, Guilherme comemorava três dias sem contato com a pornografia online. Já Miguel contava 32 dias "limpo", ainda distante do auge de três meses, façanha máxima de sua batalha pessoal.

“Hoje em dia a pornografia acaba chegando até você, não precisa procurar. É como oferecer um coquetel para um bêbado. Chega pelo WhatsApp, Facebook, Twitter, qualquer rede social. Você acaba pensando em pornografia influenciado por coisas culturais também, como uma ou outra música sertaneja que fale de uma menina dançando de saia curta.” Ricardo*, universitário de Belém (PA).

Com 14 anos, o americano Gabe Deem já havia visto "todos os tipos de pornografia que se possa imaginar" e se sentia dominado pela compulsão. Hoje, aos 27, o personal trainer de Dallas é quase uma celebridade da comunidade online que luta contra o vício nos sites Reboot Nation e Your Brain On Porn. Veja seu depoimento:

UOL: Na fase de compulsão, você se tornou agressivo com as mulheres?
Gabe Deem: Com o tempo, as conversas que eu tinha com os meus amigos sobre garotas mudaram. A conversa não era sobre qual garota beijava melhor, mas quais garotas deixariam a gente fazer aquilo que víamos na pornografia. Eu me tornei manipulador e coagia minhas parceiras a fazer o que eu via na pornografia.
UOL: Como você se recuperou?
Gabe Deem: Aprendi que meu cérebro pode ser religado e pode reconquistar sensibilidade se eu desse um descanso de estímulos artificiais para ele. E fiz isso. Em pouco tempo minha libido e rotina sexual com a minha parceira voltaram à normalidade. Esse processo de recuperação é o que chamamos de "reinicialização" (reboot), em que uma pessoa pode restaurar as configurações de fábrica de seu cérebro. O "reboot" é um tratamento de 90 dias sem estímulos sexuais artificiais, ou seja, longe dos sites de pornografia.
UOL: Que histórias tem recebido no site?
Gabe Deem: Alguns jovens que me escrevem pela primeira vez estão depressivos e suicidas. Eles estão assustados com a possibilidade de nunca mais conseguirem ser sexualmente ativos com suas parceiras.

FETICHE EM POKÉMON
Os especialistas dizem notar que, quando um jovem passa a ter a pornografia como parte da sua vida, é comum "refinar" os critérios de prazer. Ou seja, para muitos garotos, o sexo convencional deixa de ser atrativo. É neste momento que começa uma jornada por categorias extremas e inusitadas, todas disponíveis para quem tem uma dose a mais de curiosidade e uma boa conexão à internet. "Passam das fotinhos de meninas nuas para taras como troca de casais, sexo grupal e violência contra travestis. Eles cansam de uma coisa e vão atrás de algo novo, mais pesado", diz Thiago Torres.

O site PornHub é um dos campeões mundiais de acesso em conteúdo adulto. Recentemente, o grupo divulgou um relatório sobre o comportamento dos seus usuários. No trecho que mapeia as pesquisas dos brasileiros, nota-se o aumento da predileção por vídeos pornográficos em forma de desenho animado. Em 2015, "cartoon" foi o termo mais usado em acessos do Brasil, enquanto "hentai 3D" foi a subcategoria que mais cresceu entre usuários do país, com 693%. O estudo também ressaltou o interesse dos brasileiros por situações específicas envolvendo personagens de "Pokémon" e "Scooby Doo".

"A animação passava uma ideia de inocência, de perfeição. É uma coisa fantasiosa, parecia não cansar", diz o universitário Ricardo*, que em seu depoimento ao TAB admitiu ter passado por uma fase específica de busca por pornografia animada.

A mente de um compulsivo
Há três regiões do cérebro que respondem mais ativamente em pessoas com comportamento sexual compulsivo do que em pessoas "saudáveis" - são as mesmas regiões ativadas em alcoólicos ou dependentes de drogas em contato com seu objeto de compulsão.


PORNÔ, DROGA?
O protagonista do filme "Como Não Perder Essa Mulher" namora a personagem de Scarlett Johansson, mas mesmo com esse incentivo ele só consegue se satisfazer em sessões de prazer solitário. Em uma reflexão, o rapaz admite que começa a ficar excitado só de ouvir o seu computador ligando. É o cérebro de um compulsivo reagindo ao objeto de obsessão, diriam os especialistas.

Entender esse fenômeno moderno já inspira esforços da academia internacional. Uma pesquisa da Universidade de Cambridge (Reino Unido) analisou o impacto do vício em conteúdo adulto em cérebros humanos. Por meio da técnica da ressonância magnética funcional, os pesquisadores monitoraram a atividade cerebral de 22 homens que consomem material pornográfico de forma compulsiva e de 40 indivíduos considerados "saudáveis". Todos eles foram expostos a imagens sexuais durante a observação.

"Descobrimos que a pornografia altera a atividade cerebral e que o padrão cerebral resultante assemelha-se muito ao que é observado em um dependente de drogas quando na presença do seu objeto de compulsão", afirma a portuguesa Paula Banca, PhD em Neurociência Cognitiva e pesquisadora integrante do estudo em Cambridge. Os pesquisadores admitem que o esforço não fornece provas suficientes para dizer que a pornografia é "inerentemente viciante", mas destacam uma conclusão do estudo - quanto mais novo o indivíduo, maior o nível de atividade cerebral em situações de exposição aos conteúdos adultos.

Mas é natural que haja quem conteste qualquer interpretação de exagero de consumo de pornografia como doença. No livro "Vício Em Sexo: Uma História Crítica" (Sex Addiction: A Critical History), o professor neozelandês Barry Reay trata a questão como um frenesi oportunista e moderno. "Uma das fraquezas desse conceito é determinar o que constitui essa aflição. É uma aferição muito nebulosa, não pode ser deixada para que o indivíduo determine. Deveria existir algum tipo de critério que diga o que é exagero no consumo de pornografia", afirma o professor de História da Universidade de Auckland. "É importante reconhecer o papel da mídia, criando um clima em que conceitos não desafiados, como vício em sexo e pornografia, são a explicação mais fácil para qualquer distúrbio de comportamento sexual", acrescenta.

INTERVENÇÃO ESTATAL
Um debate promovido pelo Estado sobre a distribuição da pornografia como um elemento do nosso tempo ainda é incipiente. No Brasil, por exemplo, não há nenhuma política sobre como lidar com o tema. Nos últimos anos, alguns poucos países deram sinais que medidas de inibição podem virar tendência, preterindo iniciativas de diálogos mais amplos sobre comportamento e educação sexual.

Em 2013, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, afirmou que a pornografia online estava "corroendo a infância" dos jovens e anunciou que todos os provedores de internet do Reino Unido teriam como padrão bloquear conteúdos adultos - quem quisesse o acesso, teria de comunicar o interesse. No ano passado, a União Europeia determinou que o tráfego de informações na internet não deveria sofrer qualquer tipo de interferência, mas Cameron peitou a orientação do bloco e manteve a censura local.

O estado norte-americano de Utah aprovou recentemente uma resolução que rotula a pornografia como "crise de saúde pública", mas ainda sem oferecer diretrizes claras de como tratar o assunto. Uma das regiões mais conservadoras dos Estados Unidos - a maioria da população pertence à religião mórmon -, Utah ficou em primeiro lugar em um levantamento da Universidade de Harvard em 2009 sobre os principais consumidores de conteúdo adulto no país.

O FUTURO DA RELAÇÃO
A pornografia que influencia o comportamento de jovens é a mesma que serviu como "ponta de lança" para desenvolver tecnologicamente recursos da internet. Esse mesmo conteúdo que pode estimular agressividade contra mulheres eventualmente ajuda casais a saírem da estagnação de seus relacionamentos ou, em uma análise mais fria, mantém indivíduos em ambiente de sexo seguro, com seus hábitos solitários.

Será justo então tomar a pornografia como um mal social? Em um mundo no qual é comum adolescentes trocarem conteúdo adulto em grupos de WhatsApp, é difícil acreditar que peitos e bundas saiam de cena ou sejam controlados. Por isso, seja nas conversas acadêmicas ou na gíria juvenil, certamente é melhor pensar em como discutir de forma saudável o desenvolvimento da sexualidade. Aí, antes da escola ou do Estado, entra o papel preponderante dos pais.

"Muitas vezes eles (pais) reagem mal, de forma punitiva, de forma coercitiva. Seria mais interessante buscar a prevenção. O ideal seria um processo de educação sexual constante, desde a infância", reflete Carmita Abdo, da USP. "A gente tem observado isso com relatos das famílias, as crianças começando a se interessar e procurar pornografia na internet a partir dos 8 anos. É extremamente preocupante. Se o pai não chegar primeiro, a informação vai chegar da maneira mais errada e promíscua possível", completa o ativista Thiago Torres, do Clube Love.  *nomes alterados a pedido dos entrevistados.

Fonte: UOL
Autor: BRUNO FREITAS
Colaborador do UOL TAB

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