INFERNO - UMA VISÃO NÃO BÍBLICA

Em A Divina Comédia, o poeta italiano apresenta na forma de poema uma descrição detalhada do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. No Inferno, Dante, guiado pelo poeta Virgílio, percorre locais onde os pecadores enfrentam punições pelo que fizeram em vida.
A pedido da BBC, o escritor e historiador Stephen Tomkin listou dez curiosidades sobre o inferno, de acordo com o descrito por Dante e outros artistas.
1 – O inferno tem formato de cone
De acordo com a descrição de Dante, o inferno consiste em nove círculos concêntricos que se afunilam conforme ficam mais profundos, até chegarem ao centro da Terra. Para qual deles você é enviado depende do pecado cometido, com círculos destinados aos glutões, hereges e fraudadores. Sobre o ponto central superior, na superfície terrestre, está Jerusalém.
O rio Aqueronte corre por todo o inferno, separando-o do mundo exterior. Fora do inferno, mas também sofrendo punição, estão as pessoas que nunca fizeram nada de bom nem de mal. Elas são penalizadas pela neutralidade, vagando por toda a eternidade sendo picadas por vespas e tendo o sangue bebido por larvas.
2 – O inferno é diversificado

Dante Alighieri, autor de 'A Divina Comédia'
A imagem moderna do inferno, com chamas e labaredas de fogo como punições universais para todos, é bastante moderada quanto comparada às versões medievais. A concepção atual é provavelmente um legado do poeta inglês John Milton (1608-1674), cujo poema épico Paraíso Perdido retrata em detalhes um inferno da época de Adão e Eva, descrito como "uma grande fornalha" cujas chamas oferecem "nenhuma luz, mas sim escuridão visível".
Já o inferno medieval descrito por Dante na literatura e pelo holandês Hieronymus Bosch (1450-1516) na pintura não é um ambiente estático. As punições são variadas e se aplicam conforme os pecados cometidos. Para o poeta italiano, os semeadores da discórdia são cortados em pedaços, e os suicidas vivem como árvores pelo fim dos tempos. Aduladores nadam em mares de excrementos e traidores são condenados a terem suas cabeças comidas por aqueles que traíram. O pintor holandês mostra pessoas sendo excretadas por monstros e homens sendo forçados a se casarem com porcos.
3 – O inferno fica abaixo da terra
Na Idade Média havia o senso comum de que o inferno estava localizado no subterrâneo terrestre, e havia lendas de pessoas que chegaram a ver sua fumaça saindo através de buracos no chão. Dante estava de acordo e por isso sua concepção coloca Satã na parte mais profunda do inferno, o nono círculo. Na versão de Milton, no entanto, o inferno é distante da Terra, vista como um lugar puro e perfeito, que não comportaria o centro da maldade.
4 – O inferno pode congelar
Na verdade, o inferno é descrito como escaldante, sobretudo na versão de Milton, que descreve colinas, cavernas, praias e pântanos de fogo. Dante mostra um rio de sangue fervente repleto de pessoas culpadas por carnificinas, piras de fogo para os hereges e um deserto onde chove fagulhas de fogo sobre pessoas que cometeram blasfêmias e homossexuais.
Entretanto, para Dante, o demônio está imerso em gelo até a cintura e sempre enfrenta frio, mesmo no calor do inferno. Apesar de todo o fogo, Milton também diz que em algumas regiões do inferno há gelo, neve, granizo e ventania.
5 – O inferno é outras pessoas (e elas são reais)

Inferno da obra de Milton tinha apenas demônios
O inferno de Milton, nos tempos de Adão e Eva, ainda não tem nenhum habitante, apenas demônios. Mas Dante vê muitos papas no inferno, incluindo Anastácio 2º (que viveu no século 5º), por heresia, e Nicolau 3º (do século 13) pelo pecado de compra de cargos na hierarquia na igreja.
O teólogo Erasmo de Roterdã (1466-1536) escreveu um diálogo chamado Júlio Excluído, onde o papa Júlio 2º (1443-1513) tem sua entrada no paraíso rudemente recusada. Michelangelo (1475-1564), em seu afresco O Juízo Final, na Capela Sistina, mostra pessoas reais sendo puxadas para o inferno, entre elas um assessor papal, Biagio de Cesena, que se opôs à intenção do artista de incluir nudez em seus trabalhos e é mostrado tendo os genitais comidos por uma serpente. Dante também coloca no inferno uma série de pessoas que realmente existiram, entre elas alguns amigos, e os famosos traidores Cássio, Brutus e Judas.
6 – O inferno abriga criaturas fictícias
O inferno está cheio de criaturas dos mitos pagãos. Dante vê centauros, o minotauro e o cachorro de três cabeças, Cérbero. Michelangelo inclui Caronte, o barqueiro dos rios Estige e Aqueronte que leva as almas dos pecadores para o inferno. Milton vê a medusa e hidras nas profundezas.
7 – O inferno é um pandemônio
O pandemônio ("todos os demônios"), embora tenha recebido ao longo do tempo a definição de um caos barulhento, é uma palavra inventada por Milton para a capital do inferno, onde Satã e seus seguidores se reúnem em seu Parlamento infernal.
8 – O inferno tem portões
O portão do inferno de Dante tem a famosa inscrição "abandone toda esperança aquele que por aqui entrar". Menos famosas são as outras oito linhas do texto, que incluem a alegação de que o interior foi criado pela "mais alta sabedoria e amor primordial". Para Milton, há nove portões: três de bronze, três de ferro e três de rocha, guardados pelo pecado, pela morte e pelos cães do inferno.
9 – O inferno não tem tanto interesse por sexo
Muitos associam o Cristianismo a pecados sexuais, mas o sexo não é citado como uma das causas proeminentes para o castigo no inferno.
Na Divina Comédia, o professor de Dante Brunetto Latini é punido no sétimo círculo por sexo "não natural", mas o pecado de luxúria é punido no segundo círculo (o primeiro sendo o limbo, lugar que costuma abrigar bebês não batizados e aqueles que não cometeram pecados, mas não são cristãos). Dessa forma, Dante considera a luxúria coloca a luxúria como um pecado menos grave do que outros, punidos em círculos mais profundos.
10 – O inferno não é tão bíblico
Muito poucas dessas ideias provêm da Bíblia. O Livro Sagrado não faz referência ao inferno e às chamas – muitos dos detalhes de Dante foram inspirados pelos mitos gregos e romanos, e a vasta maioria das concepções mais recentes são fruto do imaginário medieval ocidental.
Artistas cristãos orientais nunca tiveram o mesmo nível de interesse pelo assunto, e mesmo no Ocidente isso foi algo tardio – a doutrina do tormento perpétuo foi introduzida em 1215, no Quarto Concílio de Latrão, apenas um século antes de Dante.
Estima-se que há mais menções ao paraíso do que ao inferno na Bíblia (na Nova Versão Internacional, uma tradução do Livro Sagrado): seriam 622 versículos citando o paraíso, e apenas 15 ligados ao inferno.
Francisco Orofino, professor de teologia da faculdade EST, em São Leopoldo (RS), no entanto, diz que é "arbitrário" fazer qualquer contagem de palavras contidas na Bíblia em línguas que não o hebraico ou o grego, devido às diferentes traduções e interpretações em cada idioma – o que pode produzir resultados diferentes.

"Devo dizer que todo o problema está nas palavras conceituais 'paraíso' e 'inferno'. Se por 'paraíso' fizeram um levantamento em inglês da palavra 'heaven' incluíram neste levantamento palavras hebraicas e gregas que não significam em si 'paraíso' já que termos como 'céu' e 'céus' entram na conta. Portanto o número para 'paraíso' é totalmente falho. Nem sempre o conceito de 'céu' equivale a 'paraíso'. No caso do 'inferno', a palavra hebraica para o termo é sheôl, que geralmente é traduzida para o português como 'abismo, tumba, ou sepultura', e aí o número subiria muito", explica.

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